quinta-feira, 30 de agosto de 2012

CRONICAS DE FALABELA



A nova-iorquina Pamela Druckerman é casada com um inglês e mora com ele em Paris, onde teve filhos. Na Inglaterra ou nos Estados Unidos, ela poderia ter se relacionado com outras mães exaustas e privadas de sono. A maternidade em Paris, porém, era diferente.
Pamela se viu em um estranho mundo em que os bebês dormiam a noite toda a partir dos dois meses, comiam no horário das refeições dos adultos e geralmente frequentavam a creche desde os nove meses. Um mundo em que as crianças seguiam uma dieta variada e sofisticada e não jogavam o jantar fora. Enfim, um mundo em que as mães não viviam exaustas e respingadas de vômito. Ao contrário: aparentavam ser chiques, até mesmo sexy, e tinham suas próprias vidas de adultos.
Pamela se frustrou ao descobrir que as mães francesas não estavam interessadas em se relacionar com outras mães. Elas tinham coisas melhores para fazer.
Como jornalista e mãe desesperada, ela estava ansiosa para desvendar o segredo da educação francesa. Parecia “oscilar entre ser extremamente severo e chocantemente permissivo”, mas os resultados foram impressionantes. Os pais não gritavam e os filhos eram calmos, pacientes e capazes de lidar com frustrações. Pamela entrevistou pais e especialistas e comparou suas descobertas com o que viu e pesquisou em sua terra natal. O resultado está em French Children Don’t Throw Food (Crianças Francesas Não Jogam Comida Fora, em tradução livre). A versão americana, Bringing Up Bébé, está causando polêmica nos EUA.
Pamela não busca dar conselhos, apenas descreve sua experiência e apresenta os dois diferentes métodos: a calma, prazerosa e – para a maioria – agradável experiência francesa, contra o razoavelmente histérico, intenso e exaustivo método anglófono. A escolha é do leitor.
Paciência e pulso firme
O segredo francês é esperar: o método não dá gratificações imediatas. Ele começa mais ou menos no nascimento. Quando um bebê francês chora à noite, os pais se aproximam, param e observam por alguns minutos. Eles sabem que o padrão de sono dos bebês inclui movimentos, barulhos e ciclos de duas horas de sono, entre os quais o bebê pode chorar. Deixados sozinhos, eles podem se acalmar e voltar a dormir. Se você irromper como um anglófono e imediatamente pegar o seu bebê no colo, está o treinando a acordar de propósito. Resultado? Com frequência, bebês franceses dormem a noite toda a partir dos dois meses.
Crianças francesas continuam a esperar – quando são bebês, aguardam “longos intervalos entre uma refeição e outra”, e, quando mais velhos, esperam até as 16h por doces e bolos (sem guloseimas antes do caixa do supermercado) ou até suas mães terminarem uma conversa ou seja o que for que elas estejam fazendo no momento. Até mesmo crianças pequenas esperam sem problemas pela comida em restaurantes.
Essa espera, segundo os franceses, “é a primeira lição crucial sobre autoconfiança e como aproveitar a própria companhia”.
Françoise Dolto, “o titã da educação francesa”, acredita que crianças são racionais e “compreendem linguagem assim que nascem” – por isso, você pode “explicar o mundo para elas”. Deve-se impor “limites firmes, mas lhes dando uma liberdade enorme dentro desses limites”. É uma mistura difícil com a qual se familiarizar. Os franceses acham que crianças devem aprender a lidar com frustrações. É uma habilidade essencial para a vida. E “a palavra ‘não’ livra a criança da tirania dos seus próprios desejos”.
Voltando para casa, Pamela Druckerman ficou chocada ao ver as mães americanas seguindo seus filhos pelos parquinhos de diversão, comentando em voz alta todos os seus movimentos – tão diferente das mais distantes mães francesas, que sentam no canto do parque conversando calmamente com amigas, enquanto deixam seus filhos irem em frente.
Outros fatos
As mães francesas são mais calmas quanto à gravidez. Não existem avisos aterrorizantes sobre alimentos e sexo ou apelos por parto natural. Na França, 87% das mulheres tomam anestesia peridural e não parecem incomodadas. A França supera os EUA e a Grã-Bretanha em quase todos os índices de saúde materna e infantil.
As grávidas francesas são mais magras. Para elas, “desejos por alimentos são transtornos que devem ser superados”, e não tolerados porque o feto quer cheesecake.
Os franceses também não mimam seus filhos. As crianças são treinadas a comer de tudo. Sem ceder para comedores exigentes. Sem cardápios especiais para crianças em restaurantes. Aqui vai um menu de quatro pratos servido em creches: palmito com salada de tomate, seguido de peru com manjericão e arroz ao molho de creme à provençal, queijo Saint Nectaire com baguete e kiwi. Nenhum salgadinho à vista.
Eis um texto da mesma autora publicado pelo Wall Street Journal, especialmente para pais: “Why French Parents Are Superior“. Outras lições dos franceses: “Crianças devem dizer Olá, Até logo, Obrigado e Por favor. Isso os ajuda a aprender que eles não são os únicos com sentimentos e necessidades”; “Lembre-se (e lembre as crianças) quem é o chefe. Os pais franceses dizem: “Sou eu que decido”; “Não tenha medo de dizer ‘não’. Crianças precisam aprender a lidar com frustrações”. Muito útil.




Eu nasci com o mar aberto em frente, nasci com horizonte, mar por toda parte, a minha volta,  nos meus ouvidos, mar de sereias e marolas e barcos pendurados no teto da casa de praia de meu avô, mar de rosas brancas, quando chegava o ano bom,  mar de bolas de gude e pipas coloridas e uma solidão tão necessária para se inventar mundos e jogos. A casa da ilha ficava de frente para ele, encarando aquela vastidão bordada de navios lá longe, e a gente adivinhava futuros, trepados nos galhos da mangueira ou no pé de tamarindo. Sempre houve o mar e a certeza de que a travessia, mais cedo ou mais tarde, seria um caminho sem volta. Foi assim que o mar se apresentou, na infância – o mar de calmaria: as tias que traziam os pratos para os almoços de domingo, as primas que cursavam o normal e namoravam os rapazes que vinham jogar vôlei, a família reunida para uma fotografia na escada da varanda, os rostos corados, um universo com cada coisa em seu lugar e os destinos dos filhos previamente traçados. O mar da baía concordava com um murmúrio que não era mais do que um encrespar da superfície. 
A segunda vez em que vi o mar, ele tinha se esquecido de nossa velha intimidade. Eu era pré-adolescente, vivia agoniado com a acne que teimava em marcar meu rosto, odiava os óculos que tinha de usar, não me sentia confortável com meu corpo, com meus pelos, com a vida que se estendia a minha frente. Fomos visitar minha tia que mudara-se para o Leblon.  O mar era outro, então, com ondas imensas que rugiam e engoliam o mundo num turbilhão de espumas. Tinha outra cor, também, de um azul esverdeado intenso e convidativo.  Mas aquele não era o mar que eu conhecia, não havia a cumplicidade de então. Atirei-me de braços abertos, na alegria do reencontro, e ele me envolveu de uma vez só, com fúria e volúpia, traduzindo certamente o meu estado d’alma. Fui jogado de um lado para o outro, o calção de banho arrastado para algum lugar e acabei sendo resgatado, mais morto do que vivo, envergonhado, engolindo o choro na areia, enquanto as primas riam da minha ingenuidade. Demorei algum tempo para entender a geografia daquela rejeição e voltei para a enseada dos meus dias de menino.
A terceira vez em que vi o mar, eu já estava crescido, começava a fazer teatro e passei a freqüentar, como toda a minha geração, aquela faixa de praia que ficou conhecida como Sol Ipanema, o posto nove. Aquele foi o mar de toda uma vida, de todos os nossos sonhos, o mar inquieto das primeiras realizações teatrais, as primeiras personagens, as primeiras noites dormidas fora de casa. Aquele era um mar novo para mim, mas me seduziu de maneira irrecuperável. Foi uma paixão de cinema. Bastou um sorriso, uma lambida fria na areia, e meu coração se deixou levar num abandono de amor primeiro.  Eu não imaginava, entretanto, que os mares poderiam entrar em choque, mas foi exatamente isto que aconteceu. O mar da ilha, com as tias e os empadões de domingo e a vida programada rebelou-se contra aquele outro que sussurrava uma cantiga bem mais sedutora e eu fiquei ali, no meio daquela discórdia, literalmente entre a cruz e a caldeirinha, como minha avó costumava dizer. Mas, no fundo, no fundo, eu já sabia o que queria, de modo que abandonei o noivado, a ilha, o apartamento que meu pai estava comprando e mergulhei naquelas águas que, desta vez eu sabia, iam me receber e encontrar um lugar para mim.
Eu olho para o mar de Fortaleza, neste sábado, e as imagens chegam, como num filme, as lembranças de todos os mares que banharam a minha vida. Faz um dia lindo, o céu é um espetáculo à parte e as imensidões de areia branca imitam nuvens na terra. A natureza hoje está revestida de uma grandeza comovente. Procuro algum sinal de que aquele é um mar novo, mas a cantiga é conhecida e meu coração está finalmente em paz, juntando todos os oceanos numa grande colcha de retalhos – o mar é o mesmo que me envolveu quando menino, nadando ao lado de meu pai ou batendo as pernas no colo de minha mãe, como naquela foto amarelada que está em algum lugar da gaveta dos guardados.
À noite, no belíssimo teatro José de Alencar, com sua estrutura metálica trazida da Escócia, no início do século, e conservado com dedicação e esmero, eu digo o texto da peça com uma alegria nova, descobrindo novos prazeres nas frases, nos olhares, nos gestos – foi o mar, eu tenho certeza, que lavou o cansaço desses dias. Já quase no final, eu me aproximo de Zezé Polessa e digo, na hora em que as personagens se despedem: “Acho que finalmente atravessamos a grande água”. A frase sai cheia de significados e Zezé sorri com os olhos, cúmplice no palco e na vida. Mais um pouco e terminamos a função da noite e os aplausos do público são generosos e cheios de afeto. Eu saio para as coxias e subitamente, como  se tivesse encostado a concha dos meus anos no ouvido, escuto  a voz do mar que canta uma nova canção, tranqüila, serena, como o sopro de mãe no machucado aberto, após aplicar o curativo.  Tantas vezes eu vi o mar e tantas vezes ele se apresentou como uma nova personagem, de modo que aqui, no alto do continente, eu deixo prá trás a memória das tempestades, das incertezas e bebo a benção desse dia, à espera do tempo maior de calmaria.




A lembrança dos teus olhos gosta de me pregar peças e me deixar atordoado. Achei que essa noite ela não viria, mas ela estava apenas tomando um ar, preparando o novo ataque. Fui ver Gal cantando o mestre Tom e, enquanto aquele cristal de voz ia se instalando no meu coração urbano, trazendo todas as melodias, eis que ela chega, imperiosa, essa tua lembrança de olhos molhados. Depois que ela se infiltra, nada mais posso fazer, a não ser ficar quieto, respirando aqui e ali, enquanto ela desfila na passarela dos meus sonhos - e esses teus olhos trazem tanta coisa junto, que as imagens vêm chegando e vão se embaralhando, sem que eu possa impedir: é uma cor de mar depois da chuva, um verde que já nem é verde, mas que às vezes surpreende e me aprisiona no fogo da esmeralda, aquele brilho no coração da pedra. No meio da mata adormecida, que são esses teus olhos, surgem cidades inesperadas - os telhados de Praga, brilhando num sol tímido de inverno; Berlim aprisionada na onda de frio é vista do alto, talvez a visão do pelicano que ficou seu amigo, no zoológico de Amsterdam (não sei se eu cheguei a te dizer, algum dia, mas zoológico, prá mim, sempre foi um lugar muito triste. Não gosto do silêncio dos zoológicos). No meio de tanta cidade brotada do nada, fico eu, como quem está perdido, em busca de uma condução. Mas são coisas da vida e o grande segredo, como já nos ensinou Cecília Meireles é aprender com as primaveras a deixar-se cortar e a voltar sempre inteiro.
Agora é muito cedo ainda, ou muito tarde, e São Paulo dorme, embrulhada numa névoa cinzenta. Daqui a pouco, eu vou rasgar essa nuvem e voar para o Rio e já sei que esses teus olhos vão pousar comigo na pista do Santos Dumont. Por falar nele, eu soube outro dia que foi ele quem inventou o relógio de pulso, uma maneira simples de contar as horas na amplidão dos céus – porque estamos sempre contando as horas, não é mesmo? Eu conto cada momento, até entrar nos teus mistérios.
Gal voltou a cantar no meu coração. Fechei os olhos e lá veio a música, braços abertos sobre a Guanabara. Estou morrendo de saudades – uma saudade de cheiro, uma saudade de mato, aquele pedaço de verde que você trouxe e arranjou sobre uma pedra. Nesse dia você sorria muito, eu lembro. Tou com saudade do teu sorriso. Aquele que não me foi ofertado, mas que está no porta-retrato na frente da minha cama. Acordo e lá está você, a cabeça jogada de lado, num abandono de felicidade. Tou querendo tanto que você me oferte um sorriso, não deve ser tão difícil assim, não é? Mesmo porque eu quero sempre te dar o meu melhor sorriso (e você nunca está realmente bem vestido sem um sorriso, já dizia o homem do programa de rádio, naquele musical sobre a pequena órfã Annie, que assistimos em Londres. Você se emocionou no final e nós ficamos rindo, lembra? Pois é isso aí).
Estou usando o espaço da crônica prá te pedir um sorriso (os leitores são amigos e cúmplices e vão entender meu desvario). Tremo só de pensar que você pode se esquecer de ler minha página na quinta-feira, ou que o tempo acabe apagando a minha lembrança – não a pública que, vez ou outra, vai cruzar seu caminho numa foto de revista, ou numa nota de jornal, mas a lembrança do homem que sente saudades de você e que queria sentir outra vez o teu perfume e mergulhar na lagoa agitada dos teus olhos. Porque eles andam atrás de mim, não tenha dúvida, assombram a minha noite e ajudam a empurrar o carro do sol, quando nasce o dia.
Pode ser que tudo o que você tenha a me oferecer seja mesmo esse sorriso de encomenda. Se for esse o caso, eu vou guardá-lo na gaveta dos guardados e esperar que o tempo se encarregue do resto. Vai ficar lá, esse teu sorriso, voando sobre os telhados de Praga e os cristais da Boêmia, puríssimo e raro, como a voz de Gal cortando a noite e, vez ou outra, eu dou uma espiada e mato um pouco da saudade que me aperta. Mas há uma hora na vida em que a gente precisa ser adulto e olhar as coisas de frente, porque todas as palavras já foram atiradas para o alto e, se não caíram no lugar certo, foi por erro de cálculo e não por falta de vontade – tudo o que eu queria fazer era poesia, acredite.
Por falar em poesia, tenho lido coisas bonitas aqui e ali, tenho saído pouco, tenho tentado rir com amigos e tento descobrir com Ele que traçado é esse de linhas tortas, para escrever direito uma história que deveria ser de amor e só de amor, mas que toma rumos estranhos, assim de repente, contra a minha vontade, contra a sua vontade, como se outras vozes falassem por nós.
Estou escrevendo essa crônica fantasiada de missiva, porque os dias estão correndo cada vez mais rápidos e o século vinte vai se despedindo. Talvez você também queira se despedir, eu não sei. Mas sei que a lembrança dos teus olhos não me deixa quieto, mexe comigo, faz a minh’alma rebentar em flor, como a do poeta, e me acena de longe com a possibilidade de dias felizes.
Eu penso em você.
Se puder, dá uma ligada uma hora dessas. É sempre uma alegria ouvir a tua voz e, pelo que andei assuntando nos livros da vida, a isto se chama amor. Um beijo. Miguel




Hoje estou desatando da memória as imagens de amor. As minhas, as nossas imagens de amor, porque as coisas são como são: no momento em que escrevo e no momento em que você lê, abrimos esses arquivos de imagens geradas a partir do amor, que são - vamos admiti-lo antes que seja tarde - os nossos arquivos prediletos.
Tudo o que realmente nos interessa está arquivado ali. Na câmara escura das nossas recordações. Imagens que vamos recolhendo vida afora. Elas têm nome e uma história para contar, cada uma delas. E nostalgia nada mais é do que a saudade da emoção vivida, num determinado momento que passou veloz. Emoções e emoções e ainda tanta emoção a ser vivida!
Muito além dos indivíduos, além das particularidades. E todas essas químicas se processando no nosso corpo, pois há quem diga que amor nada mais é do que uma sensação provocada, para evitar a loucura da espécie e perpetuar o predador. Uma ilusão passageira, uma descarga de substâncias certas no sistema. Lubrificação. Cuidados com a máquina.
 Seja lá o que for, andei tomando resoluções práticas para a existência.
Porque nunca mais nesta vida quero ter saudade de beijo.
Nunca mais a nostalgia daquele mundo de línguas dançando balé no céu das nossas bocas.
Nunca mais!
 E juro que nunca mais nesta vida quero tentar entender o amor.
Quero deixar que ele passe por mim, como um pé de vento que sopra folhas e poeira num arranjo aprumado.
Eu fico ali, no meio do redemoinho, só achando tudo muito bom.
Depois, o amor se vai e a gente continua a tocar a existência.
Assim é que deve ser.
 Nunca mais nesta vida quero gente se indo. Já está de bom tamanho.
Coração da gente vai absorvendo os golpes: que são muitos e de todos os lados, sempre.
Com quase todo mundo é assim.
De repente, as pessoas começam a ir embora, por morte matada e morrida,
por desamor, por tristeza, por ansiedade, por medos diversos, seu coração vai recebendo as pancadas e uma hora dá vontade de dar um berro, sair vomitando as mágoas todas que a gente foi engolindo.
Nunca mais gente partindo sem motivo aparente, sem dar nome aos bois ou uma denúncia vazia. Nesta vida, nunca mais!
 E nunca mais, nesta breve passagem, a palavra não dita, o gesto parado no ar, dissolvido antes do afago. Nunca mais a dose nossa de orgulho besta,
a solidão das noites perdidas por amor desenganado, o coração parado, à espreita. Isso, não. Quanto mais o tempo passa, mais a urgência da felicidade ilusória e da química do bem-estar, essas coisas todas que se operam em nossos íntimos.
Nunca mais.
Nunca mais um dia atirado ao nada, nunca mais o verbo que não se completa, todas as palavras que não foram ditas - verdades -, todas elas,
uma após a outra, formando frases, pensamentos, sentimentos, amor costurando o texto, que é linha que não refuga de jeito nenhum.
Nunca mais!
O coração se magoando todo o dia, a gente engolindo sapos e lagartos e se esquecendo de que é capaz de mudar cada uma das histórias, reescrever o livro das nossas vidas.
Uma hora mais cedo e a cena teria sido outra ou o que teria acontecido
se você não tivesse ido àquele lugar, àquela noite, quando o universo conspirava contra nós, ou a nosso favor?
Quem é que vai nos explicar?
Ninguém. Ou alguém




Chove no sítio. Uma chuva gorda que vai lavando a terra e deixando tudo com um brilho de esmeralda. Uma frase de Dickens chega de mansinho: não devemos ter vergonha de nossas lágrimas, porque elas são como a chuva que lava a poeira dos nossos corações ressecados. Eu adoro Dickens. Era assim que Esther Jablonski dizia, na montagem de “Mephisto”, na adaptação teatral de Ariane Mnouchkine para o livro de Klaus Mann, há já alguns anos. A chuva cai sobre a serra e eu, de nariz colado na vidraça, lembro daquele momento. Wilker dirigiu e éramos um bando no palco. Entrávamos em cena por ordem alfabética e Luís Maçãs colocava-se logo a minha frente, na penumbra da coxia, à espera do terceiro sinal. Nunca fomos muito íntimos, acho mesmo que o meu exagero às vezes o constrangia, mas era um belo ator no palco e eu fiquei triste quando soube que ele finalmente desistiu de esperar pelo terceiro sinal. Isso também já faz algum tempo. Estranhamente, porém, hoje eu lembro de sua nuca, parado ali, a minha frente, os colegas sussurrando frases, a música que se fazia ouvir, antes de entrarmos em cena. Percebo os contornos de sua silhueta, por detrás da cortina de água que despenca dos céus. Afasto a imagem com dificuldade e tento focar os projetos de árvores que plantei na frente da casa e que, a despeito dos comentários descrentes, de que não vingariam, resistem às intempéries do tempo com um vigor emocionante.
A macieira, que eu plantei ainda outro dia, já floriu e me ofereceu um fruto, pequeno, sem muito viço ou beleza, mas ainda assim um fruto. Digam o que disserem, é uma maçã. Solitária e de cor indefinida, parece grande demais para o caule recém brotado. Mas é um fruto, resultado do próprio esforço e agradeci do fundo do coração. A figueira, irmã de plantio, recusava-se a brotar e eu, na última vez em que estive lá, dei-lhe dois tapas no caule seco e uns gritos bem dados. A preguiçosa deixou de fazer manha e abaixa as folhas tenras sob a chuva que cai, eu vejo daqui. Brotou finalmente, achou que valia à pena.  O galho de amoreira, fincado na terra, não ouviu nenhum apelo e abriu mão de qualquer possibilidade de verde. Simplesmente, deixou-se morrer. As outras árvores em volta, excitadas com a adolescência de botões e flores, parecem não se incomodar com ela. Sua morte é apenas mais um acontecimento na ciranda dos dias. Eu é que fiz um estardalhaço, tentando reanimar a condenada. Tudo em vão. Esqueci daquela máxima que deveria nos nortear a existência: não existem sucessos ou fracassos. O que há são uma fileira de acontecimentos. Depois da chuva, vou arrancá-la da terra e queimá-la na lareira, numa cremação simbólica e rápida. Não há lugar para sentimentalismo na natureza. Tudo é como deveria ser – o pranto fica por conta dos nossos corações apegados e dos céu que, volta e meia, despeja sua mágoa lá de cima. 
Mais tarde, quando a lua brincar no meio do breu e a chuva parar, vai ter uma grande quadrilha de tatus no meio do gramado úmido. Eu tenho certeza de que eles se sabem observados, embora eu não faça nenhum ruído, imóvel, na escuridão da casa.  Aos poucos, eles vão chegando, em fila, cruzando a extensão do gramado, indiferentes aos uivos dos cães. Brincam por ali, agradecidos pelas visitas do final de semana (o que determina a prisão noturna dos cachorros) e, depois, com aquele passo miúdo, desaparecem na mata. Vou deixar algumas frutas no meio do gramado, como oferenda. Eles vão entender.
Olhar a chuva que cai é sempre um exercício para a alma. Uma daquelas coisas que sempre vemos nos filmes e que, de vez em quando, é bom fazer. Olhar fixamente para a paisagem, lavada liberta os nós e deixa nossos corações prontos para navegar no mar da lembrança. É uma forma de meditar, eu acho. E cada vez mais eu acredito que meditação é uma coisa importante, fundamental. Gastamos tanto tempo com o corpo - com a aparência que inevitavelmente vai deteriorar-se - e estamos sempre nos esquecendo de exercitar a mente, na subjetividade. Não os exercícios intelectuais de sempre, não o afiar da lâmina, para que a inteligência seja cada vez mais cortante, mas a suavidade da mente que anda livre por aí, aparando as arestas e abrindo outros horizontes, outros estágios de consciência.
Agora mesmo, parado aqui, a respiração embaçando um retângulo da vidraça, eu desfio um rosário de contas de todas as formas e todos os jeitos, as miçangas mais preciosas de minha vida que me fazem sorrir e me emocionam e me conferem a melhor parte de ser humano. Olho para o mundo sob a água e percebo outros mundos, além, de tanto que olhei para o mesmo quadro. De repente, a vontade de fazer parte daquilo tudo, enfiar minhas raízes terra adentro e só ficar. Um ponto.
Como tenho convidados em casa, pulo a janela do quarto e fico olhando para o vale, enquanto a água é trazida pelo vento em chicotadas de pingos grossos, milhares deles. Um banho de chuva como há muito tempo eu não tinha. Depois, assim como veio, ela se vai e o céu se rasga ao meio, mostrando o papo amarelo. Um cheiro de alfazema entra pelas narinas e há um silêncio de pássaros por toda a parte. De onde virá essa essência, no meio da tarde? Certamente, vem da memória e não da terra encharcada.
Depois é um céu estrelado, um copo de vinho e as janelas abertas durante a madrugada, para que um pensamento voe livre, antes do mergulho do sono: hoje foi um dia de paz.

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